Artigo: Debate no STF sobre réus delatores e delatados não é ‘filigrana jurídica’

Publicado no O Globo.

Está em jogo a amplitude do direito de defesa assegurada pela Constituição

Nada melhor que o resgate histórico dos fatos para que o leitor possa ter ideia do que está em jogo na discussão sobre a nulidade decorrente da imposição de réus delatores e delatados oferecerem em prazo comum suas alegações finais, hoje chamadas de memoriais.

Na ação penal contra Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras, ao realizar os interrogatórios dos réus delatores e do delatado, o juiz Sergio Moro deixou este por último. A lei não faz distinção alguma quanto a ordem dos interrogatórios, mas, sabiamente, valendo-se dos princípios e garantias constitucionais, interpretou que o delatado deveria falar depois dos delatores para poder rebatê-los; defender-se.

Todavia, ao determinar a entrega das alegações finais não fez a mesma distinção. Pior. Mesmo questionado pela defesa sobre o cerceamento de defesa ocasionado por impedir que esta rebatesse os argumentos lançados pelos advogados dos delatores, respondeu que a lei não fazia distinção. Ora, para a ordem dos interrogatórios a lei também não faz distinção.

A mesma lógica que orientou a disciplina dos interrogatórios deveria ter iluminado a cronologia da entrega das alegações finais. A lei deve ser interpretada conforme a Constituição, e não o contrário. O juiz não pode se limitar a invocar a ausência de previsão legal, e deixar de verificar o regramento constitucional. Foi exatamente o que o STF fez ao determinar a anulação da ação penal contra Bendine e agora, novamente, por expressiva maioria, no julgamento realizado pelo Pleno em outro habeas corpus.

Não se trata de uma “filigrana jurídica” como pareceu a alguns e, tampouco, uma questão tirada da cartola, como disseram outros. Primeiro, porque a defesa protestou imediatamente contra a prática errada do juiz. Depois, porque está em jogo um tema fundamental do processo penal numa democracia: a amplitude do direito de defesa assegurada pela Constituição e o direito de se rebater as cargas acusatórias, venham elas de onde vierem. Assim, pouco importa se o delator se equipara ao assistente de acusação ou não. O fato incontestável é que acusa e ao fazê-lo é preciso dar a oportunidade de o delatado, querendo, rebater, isto é, exercer o contraditório, leia-se: defender-se.

Uns ainda dizem que alegações não são provas novas, mas uma interpretação destas. Certo. Mas por que será que a acusação fala antes da defesa? A obviedade dispensa a resposta. A mesma lógica serve para orientar a cronologia das alegações finais entre delator e delatado.

Ou bem entendemos que não há espaço para processos e condenação sem respeito ao devido processo legal ou bem admitiremos o vale-tudo, antítese do direito e da própria civilidade.

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