Publicado na Folha de S.Paulo.
Acusar executivos de homicídio doloso é absurdo
Na abertura dos trabalhos deste ano no Supremo Tribunal Federal, o presidente Dias Toffoli falou da tragédia de Brumadinho. Ao solidarizar-se com as vítimas e suas famílias, externou o que está na cabeça de todos: “Essa lamentável tragédia é uma prova dolorosa de que é preciso mais agilidade nas ações administrativas, políticas e jurisdicionais. A nação brasileira espera rigor e celeridade das autoridades competentes na apuração das responsabilidades para que se realize efetiva justiça”.
Mas a palavra justiça não pode ser um eufemismo para esconder a arbitrariedade de prisões pressupondo a culpa de quem é mero investigado e, pior, invocando a ocorrência de crimes mais graves do que os previstos em lei apenas com o intuito de se dar uma resposta rigorosa, numa espécie de catarse social.
Rigor fora da lei é abuso intolerável. Daí a advertência do ministro Celso de Mello, decano do STF, de que o processo penal “não se projeta e nem se exterioriza como uma manifestação de absolutismo estatal”.
Não bastassem as precipitadas prisões de alguns engenheiros, numa verdadeira presunção de culpa, sem que nem sequer haja um laudo da polícia técnica atestando uma suposta fraude nas inspeções da barragem, já se fala no dolo eventual de todos aqueles que, direta ou indiretamente, intervieram na barragem –para deixar claro, não advogo para nenhum dos envolvidos neste caso.
Para melhor situar o tema, vale recordar que o dolo é a vontade consciente de realizar um crime. Daí o Código Penal (art. 18, inc. I) dizer que o crime é “doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Na primeira parte temos o dolo direto (querer o resultado) e na segunda o chamado dolo eventual.
Nelson Hungria, pai da fórmula do Código Penal, salientava que “assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer”. Há uma razão jurídica (e também prática) a exigir a demonstração de que o agente, mais do que assumir o risco, anuiu previamente com a ocorrência do resultado, isto é, ratificou-o de antemão.
É que no comportamento imprudente o agente também desenvolve uma conduta arriscada, vale dizer, pratica um fato perigoso, inobservando um cuidado necessário, mas não quer o resultado.
Pergunta-se: seria possível dizer-se que os engenheiros e diretores da Vale queriam que a barragem rompesse? Ou mesmo assumiram o risco de que isso ocorresse, ratificando esse resultado de antemão?
Parece pouco provável que sim, salvo a hipótese de as investigações, no futuro, demonstrarem o contrário. Poderia ter havido grave negligência, imprudência ou até imperícia dos engenheiros? Deixemos a perícia e as investigações oficiais falarem.
Mas, mesmo que se afastem essas questões e se admita que houve dolo eventual em relação à possibilidade do rompimento da barragem, é evidente que nesse caso o crime a se identificar é o de inundação agravada pelo resultado morte, e não o de homicídio doloso –a não ser, é claro, que se demonstre a vontade de se matar alguém ou um grupo de pessoas.
A indeterminação das pessoas atingidas é o que diferencia o dolo do homicida da ação de quem pratica o crime de inundação agravado pelo resultado morte. Essa é a lição unânime dos estudiosos do direito penal e do próprio Supremo Tribunal Federal (Extradição 654). Foi também o entendimento firmado recentemente pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em acórdão unânime da sua 4ª Turma, no caso de Mariana.
Fosse diferente, o Ministério Público se veria na obrigação de ter que denunciar todos os envolvidos também por inúmeras tentativas de homicídio das pessoas que se salvaram e, pior, admitir que queriam a morte das vítimas por asfixia. Convenha-se que essa demasia demonstra o absurdo da ideia de homicídio doloso.