Publicado no Estadão.
Temos um presidente democraticamente eleito. A maioria escolheu. Está sacramentado.
Fui crítica ferrenha ao candidato eleito durante toda a eleição. Fugindo do que é recomendável a um advogado criminal – que deve ter sua atuação apartidária e independe de posição política, afinal, qualquer cidadão é igualmente detentor de garantias e direitos -, posicionei-me dura e publicamente contra a candidatura de Jair Bolsonaro.
Vi a maioria dos colegas de profissão, de ideologias e partidos diversos, fazerem o mesmo. A advocacia criminal posicionou-se em peso contra o então candidato e hoje futuro presidente da República. Não foi à toa.
Aquilo que funda e sustenta nossa profissão, essencialmente a luta pelas garantias individuais e a exigência do respeito pelo Estado às suas próprias regras, inviabilizam o apoio a quem será o nosso futuro presidente, cujo discurso foi, à pretexto do desejável combate à corrupção, de nulificar grande parte dessas garantias, deixando à deriva quem mais precisa delas, o público alvo do sistema criminal: o pobre, o negro e o excluído.
Esse público faz parte das tais minorias tão judiadas nos discursos inflamados do nosso futuro presidente.
A leitura do plano de governo do candidato eleito, no que diz com a segurança pública, arrepia qualquer um que conheça um tiquinho da área criminal, que conheça o sistema carcerário, as mazelas do processo penal e quem de fato sofre com o sistema.
As medidas atingem em cheio não os tais ‘corruptos’, mas aqueles que sequer condições de contratar advogado têm (pelo menos temos uma competentíssima defensoria pública que luta bravamente para não ser engolida pela crescente demanda dos processos criminais).
Foram muitas as declarações de viés autoritário e anti-garantistas feitas pelo candidato eleito ao longo da vida e das próprias eleições. Não há como não recear o que está por vir. A história tende a se repetir e os sinais que temos são alarmantes. Didática é a palestra dada por Steven Levitsky, professor de Harvard e autor do livro Como as Democracias Morrem, acerca da política brasileira. Está disponível no youtube. Todos deveriam ver.
É bem verdade que, em suas primeiras declarações pública após a eleição – depois de um longo e conveniente ostracismo em debates -, o futuro presidente disse que respeitará a Constituição. Até a portava nas mãos. O gesto, é preciso dizer, é louvável, desde que, claro, seja mais do que um gesto vazio e midiático.
Se nosso presidente realmente pretende ser ‘um defensor da Constituição’, é preciso que compreenda o que efetivamente é um Estado Democrático de Direito, conceito que vai muito além do voto popular que o colocou no poder.
É imprescindível que entenda o real significado de igualdade e a função essencial do Estado para atingi-la. Que perceba que é imprescindível zelar pelas minorias, pois a essência da democracia é dar voz, vez e direitos a elas. Que compreenda que isso não é coitadismo, mas um dos pilares do livro que ele ergueu ao ser eleito.
Que ele saiba que, numa democracia de verdade, não há derrotados a serem exterminados e que quem apoiou seu adversário (inclusive o próprio adversário) é tão povo brasileiro quanto quem o apoiou. É preciso que ele saiba garantir os direitos desses e de todos aqueles que divergem e divergirão ao longo dos próximos anos de suas opiniões e decisões. O pluralismo político é fundamento do Estado brasileiro, garantido no artigo 1.º do livro que quer ser defensor.
Que ele aprenda (e rápido) a respeitar a crítica e a oposição.
É preciso compreender que não se ameaça veículo de imprensa (ou professor, ou quem for) por sua posição crítica. É preciso entender o real papel da imprensa, o sentido da liberdade de informação e de expressão. Tudo isso também está na Constituição que ele ergueu no domingo.
O futuro presidente precisa compreender que o estado é laico e que ele pode ter a religião que quiser, mas não pode confundir governo e igreja e, por isso, seu primeiro ato público como futuro presidente não deveria ser uma oração, representativa de uma única e determinada religião.
É preciso que o candidato eleito compreenda o real sentido do sistema de freios e contrapesos, que saiba respeitar a autoridade e a independência do Judiciário e a autonomia do Congresso.
É preciso que compreenda que ser eleito não o tornou dono do país e que a própria Constituição Federal prevê que é crime de responsabilidade do presidente os atos que atentem contra a Constituição Federal, especialmente contra o livre exercício dos Poderes da República, contra exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais (art. 85).
É urgente que ele compreenda o real sentido da liberdade e que respeite e defenda todas as suas facetas, não apenas a econômica. É preciso que entenda que a defesa da liberdade de credo, de orientação sexual, de opinião (e muitas outras) estão garantidas, não à toa, já nos primeiros artigos do livro que disse que defenderá.
É preciso que compreenda que suas atitudes e discursos têm reflexos diretos na população do país que passará a ser governado por ele. E que declarações bélicas, gestos de arma de fogo metralhando adversários e o declarado desprezo por minorias não são só uma “brincadeira inofensiva”, mas um incentivo para atos de barbárie. É preciso que o futuro presidente assuma as consequências de seus atos.
É necessário que o futuro presidente saiba dar o devido valor às forças armadas, mas tenha a certeza de que a democracia (com o pacote todo que vem com ela) é seu limite intransponível.
Enfim, é preciso que o candidato eleito saiba que o livro que levantou é muito mais do que um livro: é seu norte, sua baliza e seu limite. Enquanto presidente da República, sua devoção é à Constituição Federal.